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The Sadgirl
[Thursday, January 20, 2005]
Ano-novo
Feliz ano-novo aos que acordarem em 2005 sem a ressaca da culpa, plenos de vida na qual a paixão sobrepuja a omissão e o encanto tece luzes onde a amargura costuma bordar teias de aranha.
Feliz ano a quem não sonega afetos, arranca de si fontes onde borbulham transparências e não mira os que lhe são próximos como estranhos passageiros de uma viagem sem pouso, praias ou horizontes.
Felizes aqueles que abandonam no passado seus excessos de bagagem e, coração imponderável, recolhem à terra a pipa do orgulho e do tédio; generosos, ousam a humildade.
Ano-novo a todos que despertam hoje ao som de preces e agradecem o tido e não havido, maravilhados pelo dom da vida, malgrado tantas rachaduras nas paredes, figos ressecados e gatos furtivos.
Bom ano a quem gosta de feijão e se compraz nos grãos sobrados em prato alheio; a vida é dádiva, contração do útero, desejo ereto, espírito glutão insaciado de Deus.
Novo seja o ano àqueles que nunca maldizem e possuem a própria língua, poupam palavras e semeiam fragrâncias nas veredas dos sentimentos.
Seja também feliz o ano de quem se guarda no olhar e, se tropeça, não cai no abismo da inveja nem se perde em escuridões onde o pavor é apenas o eco de seus próprios temores.
Novo ano a quem se recusa a ser tão velho que ambiciona tudo novo: corpo, carro e amor; viver é graça a quem acaricia suas rugas e trata seus limites como cerca florida de choupana montanhês.
Tenham um feliz ano todos que sabem ser gordos e felizes, endividados e alegres, carentes de afago, mas repletos de vindouras fortunas em seus anseios.
Feliz ano-novo aos órfãos de Deus e de esperanças, e aos mendigos com vergonha de pedir; aos cavaleiros da noite e às damas que jamais provaram do leite que carregam em seus seios.
Felizes sejam, neste ano, os homens ridiculamente adornados, supostos campeões de vantagens; aqueles que nada temem, exceto o olhar súplice do filho e o sorriso irônico das mulheres que não lhes querem.
Felizes sejam também as mulheres que se matam de amor, e de dor por quem não merece, e que, no espelho, se descobrem tão belas por fora quanto o sabem por dentro.
Seja novo o ano para os bêbados que jamais tropeçam em impertinências e para quem não conspira contra a vida alheia.
Feliz ano-novo para quem coleciona utopias, faz de suas mãos arado e, com o próprio sangue, rega as sementes que cultiva.
Sejam muito felizes os velhos que não se disfarçam de jovens e os jovens que superam a velhice precoce; seus corações tragam a idade alvíssara de emoções férteis.
Muitas felicidades aos que trazem em si a casa do silêncio e, à tarde, oferecem em suas varandas chocolate quente adocicado com sorrisos de sabedoria.
Um ano feliz aos que não se ostentam no poleiro da própria vaidade, tratam a morte sem estranheza e brincam com a criança que os habita.
Feliz ano-novo aos sonâmbulos que se equilibram em fios que unem postes e aos que garimpam luzes nas esquinas da noite.
Um ano-novo muito feliz a todos nós que juramos seqüestrar os vícios que carregamos e não pagar o resgate da dependência; o futuro nos fará magros por comer menos; saudáveis, por fumar oxigênio; solidários, por partilhar dons e bens.
Feliz 2005 ao Brasil que circunscreve a geografia do paraíso terrestre, sem terremotos, tufões, furacões, maremotos, desertos, vulcões, geleiras, tornados, neves e montanhas inabitáveis. Conceda-nos Deus a bênção de tantos dons, livres de políticos que constroem para si o céu na Terra com a matéria-prima do inferno coletivo.
Frei Betto é escritor, autor de Típicos Tipos - Perfis Literários (A Girafa), entre outros livros.
[Wednesday, January 19, 2005]
A concepção do meu filho começou no dia em que eu, andando sozinha pela rua, me conformei com o fato de que nunca teria filhos. Eu tinha muitos motivos para acreditar nisso, e por muito tempo isso me feriu. Para alguém que segue uma divindade da fertilidade, era como uma falha inominável, um fracasso a ser carregado dia depois de dia. Mas quando comecei a estar com o Marlon, embora ele não dissesse nada de diferente do que outras pessoas haviam dito, eu me senti cicatrizar. De algum modo eu precisava que ele me dissesse que a culpa não era minha, que não era um fracasso. E a partir dai eu pude me conformar.
Passei a vida toda sem desejar ter filhos. Ele também. Nesse dia, andando na rua, me caiu essa ficha. Como era bom isso, de ele não querer ter filhos. Porque de todos os homens do mundo, dele eu sabia que nunca ia ouvir uma cobrança por talvez não ser capaz de ter filhos. Ele não se importaria. Isso foi uma certeza tão boa.
Uma certeza tão boa que, embora não mudasse nada na aparência da minha vida, mudou tudo. A sensação de que se pode fazer qualquer coisa junto com alguém. E que tudo é natural, bom e certo.
Embora haja pessoas que nunca vão acreditar nisso, a gente já planejava ficar juntos tipo juntos mesmo. A gente já tinha esse plano quando tudo aconteceu. É engraçado, porque por mais que tenha sido inesperado, por mais que tenha acontecido em uma hora que não é a que eu escolheria, não posso dizer que tenha sido em má hora. A gente já passava a maior parte do tempo juntos, eu tinha acabado de “ganhar” dos meus pais que junto com a reforma da casa eles construíssem para mim minha própria casa.
Então aconteceu. Não, nós não nos descuidamos. Bastou um único acidente, justo na data exata da minha ovulação. Não precisou minha menstruação atrasar muito, de algum modo a gente já sabia.
O teste laboratorial eu nunca peguei o resultado. Fizeram tanta palhaçada que desencanei de ir buscar e fiz o teste de farmácia só para confirmar o óbvio e já sabido. Descobri umas coisas interessantes, como que o teste de farmácia tem a mesma eficácia do laboratorial, noventa e poucos por cento. E desde o tempo do meu jogo do Pequeno Laboratório de Química Experimental, não vi uma reação tão rápida.
Lá dizia que depois de cinco minutos, eu veria o resultado. Uma linha rosa, negativo. Duas linhas rosas, positivo. Bastou a ponta do bastão encostar no fundo do vidrinho, para duas linhas de um rosa forte surgirem feito uma bandeira.
Não vou mentir e dizer que achei isso ou aquilo. Fiquei parada olhando o bastãozinho durante uns quarenta minutos, sem pensar em coisa nenhuma. Eu já tinha quase certeza, era só uma confirmação. Reação, eu não tive nenhuma.
O primeiro presente que o bebê ganhou foi da Mel. Um sapatinho vermelho (pela tradição, para sinalizar que o bebê é bem vindo, se dá um par de luvas ou sapatinhos vermelhos. Coisas da “vechia Itália”, com uma pitada de ciganagem). Foi um presságio bom. Tanta gente ficou feliz com essa gravidez, que me surpreendi. Mesmo entre pessoas que tinha certeza, iriam ficar chocadas/ com raiva/ decepcionadas, a reação foi misteriosamente muito positiva.
Foi entre os mais jovens que minha gravidez encontrou mais preconceito. Embora não falem com todas as letras, eu teria que ser cega para não perceber como é difícil para muitos dos meus amigos aceitar essa gestação. Eu tenho paciência com eles, porque são uma minoria. Dos lugares mais inesperados vem o apoio e a felicidade. Os preconceitos e os traumas de uns poucos, quem vai vencer é o tempo.
E mesmo se toda a família e todos os amigos se voltassem contra, eu tive uma certeza desde o início. Eu não podia ter um companheiro melhor para tudo do que o Marlon. Ele cuida de mim, me ajuda, se interessa, demonstra que está feliz. Aceitou tudo tão bem, mais rápido até do que eu, que fiquei paralizada de medo durante um bom tempo. Ele sempre está lá para me lembrar que os pesadelos são só sonhos ruins. Para deixar bem claro que esse filho não é meu filho, é nosso filho. Para me lembrar de que vamos ter um filho.
O momento que para mim foi mais forte que ver o bebê pelo ultrassom foi escutar o coração dele pela primeira vez. Quem ouviu a gravação que eu fiz falou em trem, bateria de escola de samba, um monte de comparações. Mas é porque eles nunca escutaram o coração de um beija flor. Eu já. E reconheceria aquele som em qualquer lugar. É tal e qual. Forte, rápido, como se fosse para contrabalançar a fragilidade do corpo. Pareço escutar aquele som quando me distraio, é uma música que decorei das três vezes que o ouvi.
Estar grávida não é bom ou ruim. Simplesmente é. Eu não sou uma outra pessoa. Mas percebo coisas que não enxergava antes. E você não sente as coisas por igual. Tem momentos em que essa constatação, de que está grávida, quase te afoga (no sentido bom de afoga). Em outras, é uma realidade simples, como “o sol nasce no leste”, e não dá para entender porque gera tanto barulho entre as pessoas.
Mas tem momentos. Como a primeira vez que senti o bebê se mexer. Eu me sentia péssima. Era um dia realmente ruim. Foi o dia em que escrevi o post que o Marte usou como desculpa para brigar comigo e me chamar de louca e tantas outras delicadezas. Estava miseravelmente deprimida, como fazia tempo eu não ficava. Me sentia distante dos meus amigos, como se eles não me quisessem por perto e estivessem arranjando desculpas para isso. O tempo estava horrível, e com o passar das horas, eu não me sentia mais triste, eu simplesmente não sentia nada. Foi nessa que ele se mexeu. Como se quisesse me lembrar que estava ali, que eu não estava sozinha, que eu tinha uma família. Como se pela primeira vez tivesse decidido me procurar, não esperar pelo meu contato, porque eu precisava dele. E isso foi consolador e bom. Se o telefone não tivesse quebrado, eu teria tirado o post depressivo do Um Canto, mas ele só voltou a funcionar mais de uma semana depois.